A palma da tua mão.


Este sábado a crónica da Catarina Portas no Público (para quem quiser ler na integra está no rodapé aqui em baixo) deixou-me a pensar...

Termina assim:

Na vida, entre possuir ou sentir, o que escolher? Se estimamos antes tudo o que é lírico, inesperado,  fugidio, surpreendente e arrebatador, talvez não seja o cofre lugar conveniente para o guardar, porventura de nada sirva a fortaleza. Pois haverá lugar mais seguro para se guardar o que mais desejamos e o que mais nos venha a importar que a palma das nossas mãos?

Fala de um cofre que comprou e fez-me mexer no "meu", que estava fechado há muito muito tempo. Não está escondido, não tem fechadura, não é tipico, nem na aparência nem no conteudo. Só estava arrumado. 
Tem o melhor de mim e de tudo o que já fui. E soube bem reencontrar e recordar tantas histórias que guardo: boas e más, de muita loucura. Trouxeram-me paz. 
Mas a verdade é que as trocava a todas por sentir uma só na palma da minha mão. 


a tua.

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in Público,
O cofre
19.07.2008, Catarina Portas

Esta semana comprei um cofre. É quase da minha altura, deve ter para lá de um século e parece pesar pelo menos uma tonelada. A intrincada e árdua operação do seu transporte e instalação envolveu sete pessoas e arrastou-se por dois dias. Escorregou, empurrou-se, quedou imóvel, foi puxado desesperadamente. Quando finalmente o lográmos alçar para o seu posto, sobre o resto do móvel algo arrebicado que o completa, cantámos vitória e comemos chocolate. E contemplámo-lo. Ocupando o seu novo lugar, num escritório de loja centenária, parecia ter chegado a casa.
O cofre é um monstro, de facto. Mas um monstro com o seu encanto. A sua possante porta de ferro foi um dia suavemente pintada com ornamentos dourados, agora algo esbatidos, e ao centro o manípulo de cobre insiste em brilhar vaidoso. Delicado por fora portanto mas, atrás daquela porta de quase dez centímetros de espessura, arrogantemente inexpugnável lá dentro. Ao olhar para aquele ser opaco e desafiador à minha frente, que até apetecia baptizar com nome de gente para sossegar, dei por mim a pensar que também há tanta gente assim, tão fácil por fora e tão difícil de agarrar no âmago. O que guardarão dentro? Uma tragédia grega, um terramoto, um tesouro frágil, um outro mundo ou afinal coisa nenhuma, apenas o vazio existencial e uma imensa falta de imaginação quotidiana? No caso do cofre, sendo-se o feliz possuidor da sua chave bizarra e única - e a sensação tem o seu quê de emocionante - tornamo-nos facilmente o seu bom amigo. Cá está um cúmplice, com quem partilhamos um segredo só nosso, e a quem confiamos o nosso futuro. Apenas uma sombra furtivamente penetra em nós: a desconfiança de nós próprios - pois e se não somos capazes de guardar aquela chave, com a rotina dissolutamente distraída que se foi instalando na nossa vida? É que se perdemos a chave, nunca mais lá chegamos e, muito provavelmente, perdemos os nossos haveres mais valiosos ( em alternativa, arrombamos e danificamos o cofre, damos cabo da nossa protecção para recuperarmos a nossa vida - e essa perspectiva também não é animadora de tão dolorosa que se adivinha).
Quanto a haveres, valores, bens, existências, onde resguardá-los? No interior de um cofre consta que podemos conservar o que de mais importante temos. Mas, claro, falta definirmos o que será mais importante. Dinheiro ou jóias, contratos ou cheques em branco, cartas de amor ou testamentos, é tão diverso e em mudança aquilo que nos importa na vida. Na vida, entre possuir ou sentir, o que escolher? Se estimamos antes tudo o que é lírico, inesperado, fugidio, surpreendente e arrebatador, talvez não seja o cofre lugar conveniente para o guardar, porventura de nada sirva a fortaleza. Pois haverá lugar mais seguro para se guardar o que mais desejamos e o que mais nos venha a importar que a palma das nossas mãos?

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